Em 2010, o realizador indiano Neeraj Ghaywan estreou de forma marcante no Festival de Cannes com Masaan – um drama tocante sobre amor, perda e o peso opressivo do sistema de castas, tendo como pano de fundo a cidade sagrada de Varanasi.
O protagonista do filme, interpretado por Vicky Kaushal, desempenhava uma função tradicionalmente atribuída a uma das castas mais baixas do rígido sistema hindu – a cremação de corpos ao longo do rio Ganges. Masaan integrou a secção Un Certain Regard do festival, destinada a obras com estilos invulgares ou narrativas não convencionais, e arrecadou os prémios FIPRESCI e Avenir (Prémio Futuro Promissor).
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Comprar um espaço para minha empresa.Desde então, Ghaywan procurava uma nova história que abordasse as comunidades marginalizadas da Índia. Foi no auge da pandemia que o realizador encontrou inspiração: um amigo, Somen Mishra, diretor criativo da Dharma Productions em Mumbai, recomendou-lhe o artigo de opinião Taking Amrit Home, publicado no The New York Times, da autoria do jornalista Basharat Peer.
O que atraiu Ghaywan foi o relato das viagens de milhões de indianos que, durante o confinamento severo, percorreram a pé centenas ou milhares de quilómetros para regressar às suas terras natais. No entanto, foi o coração da narrativa – a amizade de infância entre dois homens, um muçulmano e outro dalit (antigamente chamados « intocáveis ») – que verdadeiramente o comoveu.
Inspirado por este artigo, Ghaywan realizou o seu novo filme, Homebound, que estreou esta semana novamente na secção Un Certain Regard de Cannes. A exibição terminou com uma ovação de nove minutos, com muitos espectadores visivelmente emocionados. O realizador abraçou com força o produtor principal, Karan Johar, e juntou-se aos jovens protagonistas Ishan Khatter, Vishal Jethwa e Janhvi Kapoor num abraço coletivo.
Sendo o maior destaque sul-asiático de Cannes 2025, a projeção atraiu figuras de peso da indústria cinematográfica. A realizadora indiana Mira Nair, vencedora da Caméra d’Or em 1988 com Salaam Bombay, atravessou duas filas de cadeiras para cumprimentar Johar. O realizador paquistanês Siam Sadiq, premiado em 2022 por Joyland, gravou o ambiente na sala e partilhou-o no Instagram.
A grande surpresa veio do apoio de um nome inesperado: Martin Scorsese. O cineasta norte-americano, que até agora só havia patrocinado restaurações de clássicos indianos, aceitou o convite da produtora francesa Mélita Toscan du Plantier para ser produtor executivo de Homebound.
“Vi Masaan em 2015 e adorei”, revelou Scorsese em comunicado no mês passado. “Quando a Mélita me enviou o projeto do segundo filme de Neeraj, fiquei curioso. Adorei a história, a cultura e quis ajudar. Neeraj criou uma obra lindamente construída e de grande valor para o cinema indiano.”
Além do apoio moral, Scorsese acompanhou várias fases da edição, ajudando a afinar o produto final e procurando entender o contexto cultural, o que, segundo Ghaywan, enriqueceu bastante a troca de ideias.
A dimensão simbólica era essencial para o realizador, pois procurava representar de forma autêntica a realidade retratada. Os dois protagonistas – Mohammed Shoaib Ali (Khatter) e Chandan Kumar (Jethwa) – carregam consigo séculos de discriminação por parte das castas superiores, mas partilham também o sonho comum de ascensão social, aqui materializado pelo desejo de integrarem a polícia do seu estado.
Ghaywan revelou publicamente que nasceu numa família dalit, condição que moldou profundamente a sua existência. Formou-se em administração e trabalhou numa empresa nos arredores de Deli. Embora diga nunca ter sofrido discriminação direta, vive com o peso do local onde nasceu.
“Sou o único membro da comunidade reconhecido dentro e fora das câmaras em toda a história do cinema hindi. Isso mostra a dimensão da exclusão”, declarou.
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Anuncie aqui: clique já!Segundo Ghaywan, o cinema indiano continua a ignorar as aldeias, onde vive a maioria da população. E quando se fala das comunidades marginalizadas, “é apenas em termos estatísticos”. “E se retirássemos uma pessoa dessa estatística para conhecer a sua história? Como chegou até aqui? Senti que isso merecia ser contado.”
Ao escrever o argumento, optou por ficcionalizar os antecedentes das personagens até ao início da pandemia – o momento em que começa o artigo de Peer.
Durante a sua infância em Hyderabad, Ghaywan teve um grande amigo muçulmano, Asghar, o que o ajudou a criar uma ligação emocional com as vivências retratadas na obra.
“O que me atraiu foi a humanidade por detrás da narrativa, a relação interpessoal, o que se passa no interior dessas ligações”, partilhou.
Em Homebound, Ghaywan oferece-nos a luz quente do sol de inverno: o filme é visualmente deslumbrante, retratando o norte rural da Índia, com foco nas alegrias simples e nos desafios diários dos protagonistas muçulmanos e dalits. Os dois amigos, a mulher amada (também dalit, interpretada por Kapoor), e as suas interações, trazem à superfície temas profundos e universais.
Com uma narrativa envolvente, o filme mantém os espectadores em suspenso, especialmente ao abordar os dias que antecederam a pandemia – um tempo de incerteza que, como o filme nos recorda, acabou por afetar todas as classes, castas e origens.
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Comprar um espaço para minha empresa.A fusão harmoniosa entre ficção e realidade dá origem a um poderoso documento cinematográfico, ancorado na autenticidade das suas personagens. Mais do que provocar lágrimas, Homebound está destinado a gerar debates importantes e promover uma compreensão mais profunda dos que vivem nas sombras.