Cultura/Filmes: “Cesária Évora, a diva dos pés descalços”, sobe ao palco

Combinando fotografiaas antigas, cassetes privadas e relatos pessoais, Ana Sofia Fonseca traça um retrato íntimo do grande artista cabo-verdiano, que ascendeu da pobreza ao estrelato tardio, livre de locuções e clichés.

Desde os primeiros minutos, o filme leva-nos ao passado de uma mulher que, no auge da sua fama, admitiu que “nunca gostou de sapatos”. Numa noite de agosto de 1991, um programa de rádio em Cabo Verde celebra o cinquentenário de Cesária Évora, a “diva dos pés descalços”, alcunha que a realizadora Ana Sofia Fonseca usa como título do seu documentário sobre “uma rainha da música, uma rainha sem dinheiro”. Cesária Évora estava então no início de uma imensa carreira que a levaria aos maiores palcos.

Cantava nos hotéis de São Vicente, gravava o álbum Mar Azul, aquele que mudou tudo, e respondia às perguntas de Bouziane Daoudi, jornalista do Libération, que falava do seu apartamento de duas assoalhadas “degradado”. O seu desejo, se a sorte lhe sorrir? “Ter uma casa. Uma casa que descobriríamos mais tarde, habitada pela sua família, pelos seus amigos e por todos aqueles a quem ela abria a porta, dando-lhes uma pequena nota ou algo para comer. Passar fome é algo que nunca se esquece, para a cantora que esteve no topo da lista do Olympia em 1993, depois do sucesso de Sodade.

O desgaste das dificuldades

Todas estas imagens constituem um corpus essencialmente de arquivo privado – fotografias envelhecidas de uma juventude feita de excessos, bem como vídeos captados em cassetes DV, a saborear uma refeição ligeira num avião, a conversar com o Compay Segundo cubano ou a cantar nos cabarés que eram a antecâmara da fama. São eles que fornecem o grão deste documentário com o seu forte viés: sem voz-off, sem demasiados clichés exóticos e ainda menos o desejo de apagar as arestas de uma personalidade complexa, as explosões de riso e os ataques de tristeza, para uma mulher que esteve emparedada em silêncio durante dez anos.

Sem renovar o género estandardizado da biografia cinematográfica, de que Cesária Évora já foi várias vezes objeto, Ana Sofia Fonseca, que cresceu na diáspora portuguesa, consegue apresentar um documentário de tom intimista mas de alcance universal: o destino nada banal de uma voz que a indústria discográfica recusou a certa altura, por a sua imagem não se enquadrar no cânone, uma canção que não foi polida, mas sim polida pelo desgaste das dificuldades sofridas, em que um cabo-verdiano exilado, o ferroviário José da Silva, foi o único a apostar tenazmente. A canção de “Cize”, a outra alcunha do natural do Mindelo, para quem nada era um dado adquirido, e cujo eco iria colocar o pequeno arquipélago de Cabo Verde no mapa musical mundial, e gerar uma fecunda descendência artística.

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