Doping de Pogba: A queda

Testado positivo para testosterona no final de agosto, o médio foi suspenso pela Juventus. Este é mais um episódio na vida atormentada do jogador, mergulhado numa longa crise existencial de excessos, desordem desportiva e casos obscuros.

No final de agosto, o treinador dos Bleus, Didier Deschamps, foi questionado sobre o médio Paul Pogba, ausente da seleção nacional há quase dois anos. Didier Deschamps foi generoso (“Sim, o Paul ainda é um jogador da seleção francesa”), mas suficientemente claro (“Ele vem de um ano tão complicado, entre as lesões e os problemas extra-desportivos, precisa de recuperar a sua plena forma… Quero o Paul na seleção francesa, se for o Paul”), e os presentes aqueceram com um dos costumes mais dignos do jogo: a cortesia devida a quem tanto deu. Não fechem a porta com demasiada força. Cuidar do que resta a salvar. Nesta fase, pouco mais do que o ego do Internacional Tricolor.

Desde segunda-feira, 11 de setembro, já não há mais nada. Numa entrevista sombria à emissora Al-Jezira, do Qatar, o jogador de 30 anos revelou o seu tormento: “O futebol é cruel. Podemos conseguir algo grandioso, mas no dia seguinte não somos ninguém. Paul Pogba, de 30 anos, falou sobre o caso de rapto e extorsão que o opôs ao seu irmão Mathias, entre outros protagonistas. O dinheiro muda as pessoas. Pode separar uma família, pode criar uma guerra. Por vezes, estava sozinho a pensar: ‘Não quero mais dinheiro. Não quero jogar mais, só quero estar com pessoas normais que me amem pelo que sou, não pela fama ou pelo dinheiro”. No início da noite, o jogador foi suspenso pelo seu clube, a Juventus. Na sequência de análises à urina efectuadas no laboratório Acquacetosa de Roma, o principal laboratório antidoping italiano, o jogador acusou positivo para testosterona (um esteroide anabolizante) durante um jogo disputado pela equipa piemontesa em Udine, a 20 de agosto.

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Afastar o espetro de um jogador desesperado

Nesse dia, Pogba não saiu do banco. Embora, segundo Deschamps, continue a ser um jogador da seleção francesa, o francês de Lagny-sur-Marne (Seine-et-Marne) já não é um futebolista: 213 minutos de jogo em 2023, para apenas uma partida. Nessa ocasião, a 14 de maio, esteve 24 minutos em campo antes de se lesionar no tendão. Transferido para a Juventus em agosto de 2022, não vestiu a camisola do clube de Turim nos últimos quatro meses do ano, nem participou no Campeonato do Mundo do Qatar, no inverno de 2022-2023. Na segunda-feira, a agente do jogador, Rafaela Pimenta, esforçou-se por dissipar o espetro de um jogador em apuros, recorrendo a expedientes para sair do túnel de problemas físicos (tornozelo, Covid longo, joelho, tendão) que se abateram sobre ele desde que os Bleus conquistaram o título mundial em 2018: “O que é certo é que o Paulo nunca quis infringir as regras.

É uma forma de não contestar os factos com demasiada veemência e de entrar no campo da intencionalidade, quase impossível de estabelecer e que transforma quatro anos de suspensão em alguns meses, se o jogador alegar imprudência e quisermos acreditar nele. Na terça-feira de manhã, Paul Pogba chegou ao centro de treinos da Juventus, em Vinovo, com os frascos que continham o suplemento alimentar que, segundo a sua versão, continha a substância que o colocou no radar da agência italiana antidoping. Extraordinariamente, no mesmo dia em que a Nazionale de Itália jogava pela sua vida contra a Ucrânia, nas eliminatórias para o Euro 2024, na Alemanha, Pogba fazia as primeiras páginas de todos os jornais desportivos do país.

Papagaio sem fio

Não se tornou um objeto de fascínio a longo prazo devido à sua evolução desportiva, mesmo que o seu público tenha, evidentemente, mudado de escala. Pogba nasceu no futebol já famoso. Ou melhor, radiante, como nos disse um dos que o viram num parque infantil durante uma sessão de reconhecimento, antes de o encaminharem para o centro de treinos do Havre. O teste consistia em organizar muitos pequenos jogos de seis contra seis ao mesmo tempo e mudar muito os jogadores de lugar, para ver como se adaptavam a diferentes situações”, diziam-nos em 2014. Pogba era pesado. Lento. Não era mau com a bola, mas, tecnicamente, havia jogadores muito melhores do que ele. Uma coisa nos chamou a atenção: sempre que mudava de equipa, os seus novos companheiros organizavam-se à sua volta. Ele estava sempre no centro. Era uma coisa natural. Bom, mediano ou mau, só o víamos a ele. A definição de carisma, a história do silêncio que se faz numa sala onde entra um desconhecido. Que não ficou por muito tempo. Para melhor, mas não só.

Quando recebeu a sua primeira convocatória para a seleção francesa, em março de 2013, chegou a Clairefontaine ladeado pelo seu agente na altura, apesar de os representantes dos jogadores não serem autorizados a entrar nas instalações. Chamado à ordem, alegou inocência. Deschamps não tinha motivos para não acreditar nele. A ideia de um papagaio sem cordas, capaz de perturbar o frágil equilíbrio da equipa ou dos meios de comunicação social sem planear nada, já está a ganhar raízes. No Campeonato do Mundo de 2014, no Brasil, Didier [Deschamps] tinha tudo sob controlo”, explica um membro do staff francês. A imagem dos Bleus, o lado desportivo… francamente, não podia acontecer nada. O único momento em que senti que Didier estava desconfortável foi quando Pogba se apresentou à imprensa. Foi nessa altura que as coisas podiam ter corrido de qualquer maneira. Nem mesmo Pogba pode saber o que vai dizer no minuto seguinte.

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“Pogba é uma exceção, e uma exceção é tratada de forma diferente”.

A partir daí, começou um jogo de enganos à margem dos encontros da seleção francesa e mesmo fora dela. Em Manchester, tornou-se o jogador mais bem pago de Inglaterra (336.000 euros por semana, segundo o Daily Mail) e transformou-se num exibicionista. Entre uma “Pogmaison” (segundo o próprio) completamente barroca, com um “Pogbar”, ou uma autêntica “Pogsalle de cinéma”, com cerca de trinta cadeirões de veludo, Deschamps, que tinha acabado de tentar o diabo, tornou-o invisível. Um microfone está fora de questão. Ou apenas no contexto controlado de reportagens televisivas cuidadosamente elaboradas.

Assim, aqui está ele numa série de entrevistas para o Canal +, vestindo um fato cor de vinho num andar privatizado da Torre Eiffel, contemplando Paris a seus pés, prometendo muita diversão (“vamos esmagar tudo”) e sonhando em voz alta com as multidões que, de facto, três meses depois, invadirão as ruas da capital na noite de 15 para 16 de julho de 2018, para celebrar a vitória dos Bleus no Campeonato do Mundo da Rússia. Como a megalomania não faz sentido a estas altitudes, o staff Tricolor está a explicar o texto nos bastidores: o problema não é o que Pogba tem para dizer, mas a diferença entre a perceção que ele tem de si próprio e o que o público está pronto a ouvir. Deschamps terá o seguinte a dizer: “Pogba é uma exceção, e uma exceção é gerida de forma diferente”.

Criador ou tanque

A ideia de um jogador em exílio autoimposto, sem qualquer ligação à realidade que não seja a do seu desporto, toma forma, enquanto o mundo exterior fantasia, com base em publicações no Instagram, sobre um excêntrico ligeiramente rebelde, capaz de testar o sistema de acordo com as correntes misteriosas que o movem. Uma perceção lisonjeira que explodiu durante o Campeonato do Mundo da Rússia, e não é impossível pensar que foi para melhor. Impulsionados pelo desejo de não deixar o campo mediático apenas para Kylian Mbappé, os treinadores dos Tricolores foram empurrados para a frente e Paul Pogba apareceu então um pouco nu, hesitante, ainda aterrorizado pelos 105 milhões de euros que o Manchester United tinha gasto dois anos antes para o trazer. “Na verdade, foi aí que a minha vida mudou completamente”, admite na conferência de imprensa. O coelho nos faróis do carro.

Mas há mais. No final da competição, três dias antes da final vitoriosa (4-2) contra os croatas do Vatreni, em Moscovo, Pogba explicou que não fazia ideia do que estava a fazer em campo. Uma confusão profunda e existencial. A confusão está na discrepância entre a forma como se vê a si próprio, um criador com a capacidade técnica e a imaginação de um jogador de rua, e o que Deschamps, e outros treinadores antes e depois dele, vêem nele: um destruidor de 1,91 m, algures entre um dissuasor e um tanque, muito longe dos climas suaves com que o internacional sempre sonhou. Uma carreira de jogador cego, a mão estendida dos companheiros de equipa como uma tábua de salvação (“volta”, “fica ali”…) e uma existência em que nenhuma das três peças do puzzle se encaixa: a forma como se vê a si próprio, a forma como os outros o vêem e o que o seu próprio corpo, rasgado por todos os lados, lhe permite fazer.

Seria um eufemismo dizer que o seu corpo está a sofrer com lesões que, a partir de 2019, não lhe darão descanso. De resto, Paul Pogba é um jogador controverso, um pouco confuso, capaz de sair dos oitavos de final do Euro 2021 perdido para os suíços (3-3, 4-5 nos penáltis) para os aplausos de um público deslumbrado com o seu carisma e técnica, apesar de não ter pegado numa única bola durante duas horas. É a gota de água para um médio, que pensa que é outra pessoa. Só que o outro homem é ele próprio. Depois do seu corpo, é o mundo exterior que vai deitar a mão a Pogba.

“Não é o tipo de pessoa a quem se confia as chaves do carro”.

O caso de chantagem e de extorsão que o apanhou em 2022, envolvendo homens encapuzados e armados que apresentaram ao jogador uma fatura de 13 milhões de euros (incluindo pagamentos em atraso) como preço da sua “proteção” num apartamento vazio para o qual o jogador tinha sido atraído por conhecidos, tê-lo-á pelo menos trazido de volta à corrente futebolística: a de um submundo, ligado ao jogador desde a infância, regado durante anos sob a capa de “serviços” ou “fundações” mais ou menos tangíveis ou reais, aos quais Pogba, graças a uma mudança de agente (Mino Raiola, o seu representante histórico, morreu em abril de 2022) decide cortar os fundos, desencadeando a fúria dos seus antigos devedores, que colocam a sua família – e o seu irmão Mathias, preso e depois libertado – sob pressão.

Ficaremos a saber, no entanto, que Pogba encarregou um marabu de lançar um feitiço sobre Kylian Mbappé, sem dúvida devido à sua propensão para tirar (toda) a luz. Pogba negou-o, Mbappé fingiu que não. E na terça-feira, à margem da derrota da equipa francesa por 1-2 na Alemanha, Kingsley Coman e Deschamps foram inequívocos no seu apoio ao jogador da Juve, com o treinador a ser o mais vocal: “Falei brevemente com ele [na terça-feira] e teremos a oportunidade mais tarde de poder saber, mas não tenho a certeza de que ele saiba exatamente o que lhe está a acontecer.”

A energia e a alegria de viver do jogador, assim como a proximidade afetiva com Antoine Griezmann, também lhe renderam a fama de líder, ainda que um pouco apressada e superficial para alguns. Ele também não é o tipo de pessoa a quem se confiaria as chaves do carro”, diz uma fonte próxima à seleção. A Juventus, que suspendeu o pagamento dos salários do jogador, não se pronunciou até ao momento sobre a situação de Pogba. Contratualmente, o clube pode rescindir o contrato de um jogador culpado de doping. Com um salário anual de 8 milhões de euros para alguém que não está a jogar, este poderia ser um cenário tentador para os dirigentes piemonteses.

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