As eleições presidenciais na Bolívia conduziram a um segundo turno sem precedentes, após resultados do domingo que encerram mais de duas décadas de domínio da esquerda no país andino e refletem a apreensão dos eleitores face a uma possível viragem radical para a direita
O centrista inesperado, Senador Rodrigo Paz, obteve mais votos do que os principais candidatos de direita, embora não o suficiente para garantir uma vitória imediata, segundo resultados preliminares
Paz, ex-presidente da câmara municipal que procurou suavizar a austeridade proposta pela oposição para salvar a Bolívia de um colapso económico iminente, irá agora defrontar o ex-presidente de direita Jorge “Tuto” Quiroga, que ficou em segundo lugar. O segundo turno será realizado a 19 de outubro, marcando a primeira vez desde o regresso da democracia em 1982 que a Bolívia realiza uma segunda volta presidencial
“Este modelo económico deve mudar”, declarou Paz perante multidões que aplaudiam e gritavam “Renovação!”
A campanha de Paz ganhou força inesperada nas últimas semanas com a colaboração de Edman Lara, ex-capitão da polícia com experiência em redes sociais e apoio evangélico, visto como um líder ousado capaz de combater a corrupção nas forças de segurança
Com mais de 91% das urnas apuradas, Paz recebeu 32,8% dos votos, enquanto Quiroga obteve 26,4%. Para evitar o segundo turno, seria necessário ultrapassar 50%, ou 40% com uma margem de 10 pontos
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Comprar um espaço para minha empresa.Durante a celebração, Quiroga parabenizou Paz pela liderança:
“O que aconteceu é sem precedentes. A Bolívia mostrou ao mundo que queremos viver numa nação livre”, afirmou
O declínio da esquerda boliviana
Os resultados representaram um duro golpe para o Movimento ao Socialismo (MAS), partido que governou a Bolívia quase ininterruptamente desde que Evo Morales assumiu a presidência, parte da onda de líderes de esquerda que emergiu na América Latina nos anos 2000
O candidato oficial do MAS, Eduardo del Castillo, terminou em sexto com apenas 3,2% dos votos, enquanto o presidente do Senado Andrónico Rodríguez, considerado a melhor aposta da esquerda, conseguiu 8%
Durante quase 14 anos no poder, Morales ampliou os direitos da maioria indígena, defendeu os produtores de coca contra programas de erradicação apoiados pelos EUA e canalizou os lucros do gás natural para programas sociais. No entanto, as tentativas de prolongar a presidência e alegações de relações sexuais com menores prejudicaram a sua imagem pública
A economia desmoronou sob o governo de Luis Arce, ex-protegido de Morales, com inflação anual subindo de 2% para 25%, escassez de combustível e falta de dólares para importações essenciais, criando uma crise económica sem precedentes
O descontentamento popular levou a uma onda de críticas, enquanto os líderes do MAS entraram em conflito, abrindo espaço à oposição mesmo com candidatos pouco carismáticos. Muitos políticos de esquerda enfrentaram vaias, insultos e objetos lançados durante a votação
Apelo de Morales para votos nulos
Impedido de concorrer devido aos limites de mandato, Morales encontra-se recolhido em Chapare, evitando uma ordem de prisão por alegadamente ter engravidado uma menor de 15 anos durante a presidência
Ele apelou aos seus apoiantes para anular o voto, o que se refletiu no elevado número de votos nulos: 19%, significativamente acima da média habitual de 6%
Apesar da tensão em algumas regiões, a votação decorreu de forma relativamente pacífica, com apenas incidentes menores relatados, incluindo um ataque a Andrónico Rodríguez em Chapare
Centrista assume liderança inesperada
A vitória de Paz surpreendeu, já que as sondagens apontavam para que Quiroga e Samuel Doria Medina liderassem a corrida. Doria Medina, em quarto fracasso presidencial, declarou não ter arrependimentos
Paz procura distanciar-se das propostas de Quiroga e Doria Medina de vender as reservas de lítio da Bolívia e recorrer ao FMI, ao mesmo tempo que critica duramente o MAS e o seu modelo económico:
“Quero felicitar o povo, porque isto é um sinal de mudança”, afirmou
Novo rosto, antigas raízes
Embora Paz seja visto como uma nova face com propostas frescas, mantém ligação à elite política tradicional, sendo filho do ex-presidente Jaime Paz Zamora e com carreira política longa, incluindo candidatura pelo partido de direita de Quiroga em 2014
Os bolivianos associam Quiroga e Doria Medina a administrações neoliberais anteriores, rejeitadas por Morales em 2006, e expressam cautela quanto a uma viragem radical para a direita após 20 anos de políticas populistas
Paz é visto como uma oportunidade para novas ideias e inclusão dos jovens, embora mantenha conexões profundas com a política tradicional do país