CRÔNICA: CRÔNICA: « Rússia, agressor na Europa, consegue apresentar-se em África como o defensor das vítimas do imperialismo ».

Ao confiar na desconfiança do Ocidente e na história do apoio soviético às lutas pela independência, Vladimir Putin assegurou a complacência de muitos Estados africanos.

Não estamos no centro do mundo, o que é um dos grandes lembretes da guerra na Ucrânia. Visto de outros lugares, a agressão russa não é percebida da mesma forma. Porque os interesses económicos ou diplomáticos não são idênticos, porque a geografia ou a dependência de países estrangeiros ditam escolhas, porque a experiência histórica difere.

Quando quase metade dos países africanos se recusaram a votar a favor de uma resolução nas Nações Unidas há um ano atrás, apelando a Moscovo para que deixasse de invadir – uma tendência confirmada a 23 de Fevereiro – os ocidentais foram surpreendidos, como se estivessem a lutar para chegar a um acordo com o julgamento autónomo dos africanos.

Como podem os países que vivem há tanto tempo sob o jugo dos colonizadores, alguns dos quais pagaram o preço do sangue pela sua emancipação, e que estabeleceram como princípio o respeito das fronteiras herdadas das divisões coloniais, mostrar a mínima complacência para com uma potência com uma longa história imperialista? Com uma Rússia que, dos Czares a Vladimir Putin, passando pelo poder soviético, nunca deixou de colonizar e subjugar o seu meio, da Ásia Central aos Estados Bálticos e do Cáucaso às « democracias populares » europeias? Numa altura em que o mundo se fragmenta e o Sul global se afirma, a resposta a estas questões determina não só as relações do Ocidente – e particularmente da França – com África, mas também o tipo de argumentos a utilizar contra a narrativa de Putin.

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A porosidade de certos países africanos à retórica « anti-imperialista » de Moscovo é alimentada principalmente pelo ressentimento acumulado durante a era colonial, que tem sido acentuado desde a independência pela manutenção de regimes subservientes ao Ocidente e pelas catastróficas políticas financeiras dos anos 80 e 90. O facto de os africanos não considerarem o Ocidente como paragões da virtude em questões de direito internacional não é surpreendente, especialmente para aqueles que no Sahel e na África Ocidental ainda vivem com as pesadas consequências da intervenção de 2011 na Líbia. Que a invasão do Iraque em 2003 ilustra uma certa hipocrisia no discurso sobre a defesa da soberania do Estado também não pode ser negada.

Mais complexas são as razões pelas quais os países africanos não « vêem » ou não querem ver que na Ucrânia os russos estão a travar uma guerra de conquista. « A habilidade dos russos tem sido capitalizar uma estranha conivência entre eles próprios e o antigo Terceiro Mundo, que remonta sem dúvida ao apoio da URSS às lutas de descolonização, ainda que em muitas questões – o alargamento do Conselho de Segurança, por exemplo – a Rússia apoie posições antagónicas às dos seus ‘amigos’ do Sul », explica Michel Duclos, antigo embaixador e conselheiro especial do Institut Montaigne, no seu prefácio a Guerre en Ukraine et nouvel ordre du monde (Ed. de l’Observatoire, 336 páginas, 24 euros). O paradoxo entre a agressividade crescente de Vladimir Putin e a sua capacidade de suscitar simpatia na Índia, Brasil ou África, acrescentou o Sr. Duclos sobre a Cultura Francesa, « não o prevíamos e não sabíamos como encontrar um contrapeso ».

Assim, o cúmulo do cinismo, um país que é um agressor na Europa pode apresentar-se como o defensor das vítimas do imperialismo. Para além da denúncia da propaganda e das manobras de desinformação russas em África, esta capacidade do regime de Putin de se apropriar da história do apoio soviético às lutas pela independência africana refere-se à capacidade dos diplomatas russos de apresentar a Rússia « não como procurando dominar a Ucrânia, mas como lutando pela multipolaridade e resistência ao Ocidente », analisa Jade McGlynn, investigadora do King’s College London, na revista Foreign Policy.

Observa que durante uma das suas muitas viagens africanas, o Ministro dos Negócios Estrangeiros russo Sergei Lavrov não hesitou em revelar um monumento em Angola aos soldados soviéticos que lutaram na guerra civil (1975-2002) ao lado do Movimento Popular para a Libertação de Angola no poder. Na África do Sul, Moscovo conta com a memória da assistência soviética à luta de décadas contra o apartheid pelo Congresso Nacional Africano, que também está no poder.

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O apelo da Rússia aos africanos não deve, no entanto, ser sobrestimado. A maioria dos cinquenta e quatro Estados do continente temem ser arrastados para um confronto distante. A impressionante solidariedade do Ocidente para com a Ucrânia contrasta, na sua opinião, com a forma como tem tratado os africanos quando se trata de distribuir vacinas contra a Covid-19 ou de receber refugiados. África tem os seus próprios conflitos passados e presentes, com milhões de vítimas, sem as mesmas reacções », observa Gilles Yabi, economista beninense e fundador do grupo de reflexão Wathi. O que é muito mais importante [do que a guerra na Ucrânia], por exemplo, é a mudança climática.

Este novo contexto – em que os Estados africanos estão a ser cortejados por todos os lados e a Rússia, que tem pouca consideração pela democracia, está a avançar com os seus peões, tanto militar como economicamente – é também um contexto em que a influência da França está a ser fortemente contestada. « É uma situação muito desconfortável », reconheceu Emmanuel Macron na terça-feira 28 de Fevereiro, antes de descolar numa digressão africana, algumas das suas paragens foram as do chefe da diplomacia russa.

O discurso propõe uma « nova parceria » em que as questões de segurança, há muito centrais para a política francesa em África, são supostamente relegadas para segundo plano. Mas onde a preocupação de contrariar o expansionismo russo é agora uma prioridade.

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