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Acção Social: “marginalizada” e com muitas pessoas por assistir

Moçambique está longe de atingir o objectivo da Estratégia Nacional de Segurança Social Básica, que recomenda a alocação de 2.23% do Produto Interno Bruto (PIB) à Acção Social até 2024. Ano passado, por exemplo, o orçamento do sector da Acção Social absorveu 2% de todo o Orçamento do Estado e de 0.7% do PIB previsto.

Em plena capital do país, vários cidadãos vagueiam de um lado para o outro sem destino. Para comer, alguns chegam a vasculhar os contentores de lixo. Quando a noite chega, eles improvisam um pequeno quarto a céu aberto, vezes sem conta com papelão: esses são os moradores de rua, um dos grupos mais vulneráveis em Moçambique.

Mas não só os moradores de rua que representam a vulnerabilidade de certas camadas na chamada Pérola do Índico: os idosos, as crianças órfãs e as pessoas com deficiência, cujos familiares não têm fonte de renda, engrossam a lista desses grupos que precisam da ajuda da Acção Social.

Nas ruas estreitas do bairro Chamanculo, um dos mais pobres na cidade de Maputo, encontrámos Raquel Harare. As suas rugas no rosto reflectem os 76 anos de idade que ela carrega às costas e a cabeça cabisbaixa revela a incerteza em relação a o que comer no dia seguinte.

“É boa a nossa forma de viver. Uma vida de pobreza para mim, meus filhos e netos. É boa. Se essa for a sua forma de viver, não pode pensar que os outros também vivem assim e que devem vir a si. Vivo na minha casa, junto da minha pobreza”, contou, Raquel Harare, idosa em situação de vulnerabilidade.

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Ela não tem muita força pata nada porque a idade já não a permite, Mas para que a pobreza não afunde mais a sua família, Raquel Harare opta em catar garrafas plásticas para revender às fábricas que se dedicam à reciclagem.

“Quando apanhamos plásticos levo para casa. Se alguns desses plásticos estiverem sujos, a minha filha ajuda-me a lavar e penduramos para secar. Depois disso, separamos os que estão molhados, colocamos em sacos e após encher dois ou três sacos ligamos para o pessoal da fábrica para colocar na balança e deixa-me com o dinheiro que compro arroz para os meus” dependentes, explicou a idosa residente no bairro Chamanculo.

Nos tempos idos, a vida sorrira para Raquel Harare. Ela trabalhava como doméstica na então Lourenço Marques e com os 100 escudos que ganhava mensalmente conseguiu erguer a sua casa, mas pouco ou quase nada fez para preparar a sua reforma.

“Do jeito que trabalhávamos, onde recebíamos 100 (dizia 100 escudos), não havia como ter reforma. Talvez o dinheiro de hoje é que tem mais utilidade. O dos anos 76/77 era insignificante para reforma”, considerou a idosa.
Sem reforma, Raquel recorre à ajuda dos seus filhos para alimentar oito pessoas que consigo vivem, mas nem sempre é possível. Tentou recorrer à Acção Social, mas foi infeliz.

“A minha filha quando tem alguma coisa dá” e se os outros “não o fazem é porque também têm famílias e suas casas” por cuidar, revelou a anciã, acrescentando que do Executivo ainda não recebeu qualquer que seja o subsídio. Aliás, das vezes que ela tentou, foi submetida a uma burocracia sem fim e “acabei lavando as mãos”. A idosa narrou que não suporta ouvir o mesmo coro: “volta no dia seguinte”.

Celma Massingue é a filha mais nova desta idosa de 76 anos. Aos 18 anos de idade, ela já é mãe solteira de um menino de um ano e sete meses. A jovem é testemunha das batalhas diárias que a sua progenitora trava. “Por mim, ele estaria de repouso à espera que nós, os filhos, ajudássemos, mas não temos condições para tal”.

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Sem condições para ajudar a sua mãe Celma esperava por alguma intervenção da Acção Social. Porém, tudo só terminou nos papéis. “Uma vez, vieram algumas pessoas em casa. Entrevistaram a minha mãe, lavaram dados e prometeram que iam nos ajudar, mas de lá até cá ainda não vi nada, muito menos algum subsídio”, disse num tom de quem perdeu confiança de um dia receber algum tipo de ajuda.

O secretário do bairro Chamanculo “B”, onde vive Raquel Harare, conhece a situação idosa e considera que não é prioritária.

“Aquela pessoa está vulnerável, mas quem contribui para que esta pessoa esteja vulnerável é a própria família, porque não faz sentido alguém que nasceu tantos filhos que trabalham, têm rendimento e depois a abandonam. Então, o primeiro contribuinte para a vulnerabilidade daquela pessoa são os próprios familiares”, explicou João Mbanguene, secretário daquele bairro, prometendo ajuda à idosa por considerar que ela não é culpada pela situação a que está sujeita.

E essa ajuda é, na maioria das vezes, prestada pelo braço empresarial bem como os voluntários porque o orçamento alocado para assistência às pessoas vulneráveis é insuficiente para cobrir todas as camadas sociais.

“Não porque há falta de vontade. Acho eu que é, mesmo, falta de fundos suficientes para toda a gente, mas, gradualmente, tem entrado alguns grupos. Temos, agora, pessoas que preencheram as fichas como candidatas e um dia vão entrar no sistema”, garantiu João Mbanguene.

O choro desta menina de 16 anos de idade é de desespero de quem perdeu a mobilidade já há pouco mais de dois anos. “Não consigo andar, visitar minhas amigas nem fazer trabalhos de casa porque eu lavava loiça, ia para escola sozinha. Mas agora, quando tento levantar caio” descreveu Marta César, com uma voz trémula e lágrimas à espreita.

Com a mobilidade comprometida, Marta César depende da ajuda dos outros para ir à escola e o que ela mais quer neste momento é voltar a ganhar a liberdade de poder andar com os seus próprios pés. Cadeira de rodas está fora das hipóteses.

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“Eu gostaria de voltar a andar, ir à escola, voltar para casa sem ajuda de ninguém. A cadeira de rodas seria última alternativa”, expressou-se, a adolescente de 16 anos e de seguida pôs-se a chorar por desespero.
A outra alternativa que era válida para Martinha, como carinhosamente é chamada, ir à escola era o pai, mas sem explicação clara também perdeu a mobilidade. “No dia anterior, dormi bem, mas ao amanhecer já tinha dificuldade de me levantar da cama. Assim começou a doença, com uma fraqueza nas pernas”, narrou César Mahumane, pai da Marta.

Uma doença que afectou um homem que pouco recebe da reforma, a conta própria através da carpintaria não lhe vale muito a avaliar pelos preços da medicação para si e sua filha. “Fiquei limitado, de verdade, em finanças porque já era preciso alugar um carro para irmos ao hospital, mas nunca consegui e assim fiquei desmoronando por ver minha filha a sofrer”, expôs Mahumane, com tom de resignado.

A carpintaria, alfaiataria e o dinheiro da reforma são os que mantinham essa casa em pé, mas com a doença que atinge o chefe de família, as contas complicaram. Os dois mil da reforma só servem para compra de medicamentos e a Acção Social, no distrito de Boane, conhece o caso, mas nada fez.

Com a inércia da Acção Social este jovem de 18 anos não ficou de braços cruzados e entre um vaivém das pernas, ele faz a costura de roupas que é, agora, o garante do sustento de uma casa de seis membros.

“Não há clientes nesses tempos. Por dia, é normal ter 20 meticais para o sustento de casa e para pagar hospital e alimentação não consigo cobrir todas as despesas”, lamentou José César, filho mais velho de Mahumane.
A chefe de quarteirão diz conhecer a situação da família Mahumane e assegura que a Acção Social do distrito de Boane está a prestar o devido apoio, mas a mãe da pequena Marta desmente.

“Quando eu levei o caso ao técnico Semedo, era, exatamente, para ele fazê-lo chegar à Acção Social e até há ultima semana de Setembro, ele continuava a ajudar”, afirmou Rosa Chirindza, chefe do quarteirão 16, bairro seis, em Boane, uma posição contrariada por Maria Homwana, mãe da Marta: “Fui à Acção Social quando ainda era um problema de vista e fizeram-me dar muitas voltas e acabei desistindo”.

De acordo com o Informe Orçamental: Acção Social Moçambique, 2019, no Orçamento do Estado do ano passado, foram alocados ao sector de Acção Social 6.9 mil milhões de Meticais, o que representa 2% de todo o Orçamento do Estado e de 0.7% do Produto Interno Bruto previsto, um aumento quando comparado com 2018 que assistência a pessoas vulneráveis custou aos Estado 4.6 mil milhões de meticais.

Assim, em 2019, os programas do Instituto Nacional de Acção Social visaram 609.405 agregados familiares beneficiários. Isto representa um aumento de sete por cento em relação aos 567.290 agregados familiares beneficiários abrangidos em 2018. Para este ano, o Instituto Nacional de Acção Social está a assistir mais de 592 mil beneficiários num orçamento de pouco mais de cinco mil milhões de meticais.

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O Programa de Subsídio Social Básico prevê atribuição de 540 meticais para agregados com um membro, 640 com dois, 740 se o número de agregados chegar a três, 840 se forem quatro pessoas numa família e 1.000 meticais para os que a famílias compostas por cinco membros.

O Subsídio Social Básico é atribuído a pessoas sem capacidade para o trabalho que sejam idosas e sem fonte de renda, com doenças crónicas degenerativas diagnosticadas pelas autoridades de saúde, deficientes que chefiam agregados familiares desempregados e seus dependentes também não trabalham, famílias chefiadas por crianças órfãs em situação de vulnerabilidade. A informação sobre esses grupos vulneráveis chegam ao Instituto Nacional da Acção Social através das autoridades locais.

A esses subsídios, adiciona-se o da COVID-19 que foi alvo de estudo do Centro de Integridade Pública que constatou haver uma incapacitação dos técnicos envolvidos na sua distribuição, facto que cria um espaço para o desvio de fundos.

“Nós observamos muitas queixas, relatos de pessoas em qualquer que seja o subsídio desde o social básico, PASP ou em outros apoios sociais. Há sempre reclamações de que pessoas que deviam receber não recebem aquilo que é de direito”, concluiu Leila Constantino, pesquisadora do Centro de Integridade Pública.

Outro aspecto que, para os pesquisadores do Centro de Integridade Pública, pode contribuir para a deficiente assistência às camadas vulneráveis é o facto de a Acção Social ser vista como o elo mais fraco quando o assunto é distribuição do Orçamento do Estado.

“Os recursos, quando chegam, há um jogo de poder e acaba sendo a Acção Social que não tem uma capacidade de estar naquele jogo de poder de acesso aos recursos. Então, o que acontece é que, o dinheiro que é canalizado para este sector são os restos porque ela (a Acção Social) não tem poder suficiente para poder aceder aos recursos do Orçamento do Estado”, acrescentou Celeste Banze do Centro de Integridade Pública.

Como que reconhecendo a precaridade do orçamento deste sector, o Ministério da Economia e Finanças anunciou um reforço de 20 milhões de dólares para o INAS, visando aumentar em 186% o número de beneficiários do subsídio social básico, no quadro dos apoios às camadas sociais mais vulneráveis face ao impacto social da COVID-19.

Este incremento vai permitir que o número de beneficiários do subsídio suba de 592.179 para 1.695.004.

Quanto aos moradores de rua, o Instituto Nacional da Acção Social diz que faz intervenção através de unidades sociais, num programa de combate à mendicidade, mas devido à COVID-19, estes órgãos estão encerrados. Ou seja, essa camada social não está a receber ajuda.

Por: O País

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