O artista, símbolo de resistência e coragem, marcou a história da música com a sua versatilidade e personalidade, tão marcante como a sua voz rouca, ao longo de uma carreira que durou mais de sessenta anos.
A diva da canção brasileira, Elza Soares, morreu na quinta-feira 20 de Janeiro com a idade de 91 anos, de « causas naturais », na sua casa no Rio de Janeiro, o seu gabinete de imprensa anunciou na conta Instagram da artista.
Com mais de 30 discos a seu crédito numa carreira de mais de 60 anos, a artista negra com o distinto tom rouco foi considerada uma das maiores vozes da canção brasileira. Em 1999, a BBC nomeou-a « cantora brasileira do milénio ».
« Ícone da música brasileira, considerado um dos maiores artistas do mundo, a cantora coroada « Voz do Milénio » teve uma vida extraordinária e intensa, que moveu o mundo com a sua voz, força e determinação », disse a declaração.
« Tudo na minha vida começou mal
Nascida a 23 de Junho de 1930 numa família pobre, Elza Soares conseguiu ao longo da sua carreira deslocar-se com facilidade nos mais diversos ambientes, desde a favela de Agua Santa, nos subúrbios do Rio, onde cresceu, até salas de concertos em todo o mundo.
Samba, jazz, bossa nova e até mesmo rock adequavam-se à sua voz rouca. No início da sua carreira, pensava-se mesmo que este timbre característico se devia a uma anomalia. « As pessoas costumavam dizer isso, mas ninguém tem uma corda vocal extra, é uma coisa de loucos. É distorcido, penso que é distorcido, porque tudo na minha vida começou mal », disse a cantora a uma estação de televisão brasileira em 2002.
Tal como a sua carreira, a vida pessoal de Elza Gomes da Conceição Soares alternou entre a alegria e o drama. Forçada a casar aos 12 anos pelo seu pai, teve o seu primeiro filho no ano seguinte. Aos 21 anos de idade, já era viúva e tinha dado à luz sete filhos, dos quais apenas cinco sobreviveram.
Em dificuldades financeiras – confessou ter roubado comida para alimentar os seus filhos – decidiu em 1953 participar num programa de rádio musical. Quando a apresentadora zombou da sua aparência perguntando « De que planeta é você? », ela respondeu com curvatura: « O planeta da fome ». Após a sua actuação, declara: « Senhoras e senhores, nasce uma estrela ».
« Um saxofone na garganta
Em 1962, durante o Campeonato do Mundo no Chile, onde foi convidada a ser a madrinha da equipa brasileira, a estrela americana Louis Armstrong foi encantada pela cantora e pelo seu « saxofone na garganta ». Durante dezassete anos, ela teve uma relação tempestuosa, mas fundida, com Garrincha, uma lenda do futebol brasileiro que morreu em 1983, espancada pela devastação do álcool. Três anos mais tarde, o filho do casal morreu aos nove anos de idade num acidente de viação. No total, quatro dos oito filhos do artista morreram.
A cantora de cabelo flamboyan sofreu vários reavivamentos musicais. Em 1984, gravou Lingua com Caetano Veloso. Na abertura dos Jogos Pan-Americanos do Rio em 2007, ela foi escolhida para cantar o hino nacional brasileiro a cappella.
Com o lançamento do álbum A Mulher do Fim do Mundo (« The Woman at the End of the World ») em 2015, as novas gerações descobriram-na. O álbum, que trata do racismo, machismo e violência contra as mulheres, foi um sucesso estrondoso e ganhou o Grammy Latino para Melhor Álbum de Canções Brasileiras. De Deus é Mulher (« Deus é uma Mulher »), lançado em 2018, o público vê-a cantar sentada, após várias operações de costas que reduziram a sua mobilidade. Mas ela não perdeu o seu entusiasmo. « Digo-vos uma coisa: a minha idade não tem nada a ver com a minha energia », confidenciou ela à Agence France-Presse (AFP) por ocasião do lançamento deste disco.
Crítica da onda conservadora
A cantora foi tão crítica à vaga conservadora ligada à ascensão das igrejas neo-pentecostais como às desigualdades existentes num país ainda atormentado por um grave racismo. « Vivemos num país cheio de preconceitos, é horrível. Esta é a minha casa, adoro-a em pedaços. Mas quase não temos direitos. Os pobres, os negros, as mulheres, onde estão os seus direitos?
« Eu não tenho medo da morte, tenho medo da vida. É tão mau para as pessoas que eu penso: « Meu Deus, como é que elas o suportam? Mas é preciso viver, é preciso ter força », disse a mulher que se tinha tornado um símbolo de resistência e coragem para os brasileiros.
« A amada e eterna Elza foi descansar, mas permanecerá para sempre na história da música, nos nossos corações e nos de milhões de fãs em todo o mundo. Como Elza Soares desejava, ela cantou até ao fim », concluiu a declaração neste triste dia para o Brasil.