América Latina/Venezuela: Venezuela quer apropriar-se de uma fatia da Guiana

No domingo, a República Bolivariana da Venezuela realizou um referendo para legitimar as suas reivindicações sobre Essequibo, uma região do país vizinho com enormes reservas de petróleo. Mas Caracas nega a acusação de uma futura anexação militar.

No próximo domingo, 3 de dezembro, 21 milhões de venezuelanos são chamados a votar num referendo sobre uma questão que pode parecer surrealista: concorda ou discorda de uma decisão judicial proferida em 1899? Uma decisão que concedeu ao Reino Unido uma parte da selva amazónica disputada pela Venezuela e pela colónia britânica da Guiana. À primeira vista, é como perguntar aos italianos de hoje se aprovam a integração de Nice e da Saboia em França, que data de 1860. A diferença é que o conflito atual diz respeito a uma zona repleta de ouro negro.

Esta região de 160 000 km2 (quase um terço do tamanho de França) chama-se Esequibo (ou Guayana Esequiba) na Venezuela, e Essequibo, com 2 “s”, na Guiana, um Estado independente desde 1966, um século e meio depois do seu vizinho. No século XIX, a Venezuela acusou a potência colonial britânica de se apropriar de terras a oeste do rio Essequibo, desafiando a fronteira colonial estabelecida em 1777. O litígio foi levado a um tribunal internacional, que se reuniu em Paris. A sua “sentença arbitral”, proferida em 1899, foi favorável à Guiana.

Reservas de 10 mil milhões de barris

Os venezuelanos conservam um ressentimento tenaz e há mais de um século que incluem o território nos seus mapas oficiais (como a China faz com Taiwan). O país tentou renegociar a questão em várias ocasiões, nomeadamente em 1966, em vésperas da declaração de independência da Guiana: uma reunião realizada em Genebra concluiu com um acordo para prosseguir a procura de uma solução. Uma das exigências actuais de Caracas é a de retomar esta mesa redonda.

Embora os militares venezuelanos comecem todos os dias a entoar “o sol venezuelano nasce no Esequibo”, o assunto pouco mobilizou a opinião pública do país até que o Presidente Nicolás Maduro o voltou a colocar no topo da sua agenda, em 2015: a Guiana acabava de anunciar que as prospeções realizadas pela empresa americana ExxonMobil tinham revelado imensas reservas de petróleo e gás natural no Essequibo.

Do lado guianense, a pretensão da República Bolivariana é inaceitável. Privaria o país de 70% do seu território, de 20% dos seus habitantes e, evidentemente, de recursos petrolíferos dignos de um emirado: as estimativas ultrapassam os 10 mil milhões de barris. Em 1997, o cantor local Dave Martins e a sua banda The Tradewinds gravaram uma canção calipso que reflectia o sentimento do povo e dos seus dirigentes: “Not a blade of grass”.

A febre voltou a instalar-se em agosto passado, quando Georgetown (capital da Guiana) lançou um concurso para a produção de petróleo na zona marítima de Essequibo. Em 24 de outubro, o Presidente venezuelano anunciou um referendo para legitimar a sua posição. Confrontada com aquilo a que chamou uma “ameaça existencial”, a Guiana recorreu ao Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), o mais alto tribunal da ONU, para obter uma suspensão “urgente” da votação “na sua forma atual”. O tribunal já tinha sido solicitado pelo país em 2018 para arbitrar esta disputa territorial, sobre a qual se tinha declarado “competente” em 2020, infligindo um primeiro revés a Caracas. Seguiu-se um segundo revés na sexta-feira, 1 de dezembro, quando o Tribunal ordenou à Venezuela que se abstivesse de qualquer ação que alterasse o status quo na região de Essequibo, enquanto aguardava a decisão do TIJ, que poderia demorar vários anos.

Os observadores notaram que o anúncio do Presidente socialista surgiu numa altura em que precisava de uma ofensiva mediática: no dia seguinte às primárias da oposição para as eleições presidenciais de 2024, que viram triunfar a ultraliberal María Corina Machado. A própria oposição, embora não se atreva a opor-se frontalmente a esta exigência, que goza de um grau de consenso bastante elevado na Venezuela, receia que o governo chavista aproveite a ocasião para decretar o estado de emergência e suspender o processo eleitoral.

Receio de uma anexação pela força

O referendo, cujo resultado não é duvidoso (só a afluência às urnas dará uma ideia da mobilização da população), incide sobre cinco perguntas tão complicadas quanto tendenciosas: a primeira é “Concorda em rejeitar, por todos os meios legais disponíveis, a linha de fronteira fraudulentamente imposta pela decisão da arbitragem de Paris em 1899, que pretende roubar-nos a nossa Guiana Esequiba?

Mas é a quinta pergunta que mais irrita o Presidente Irfaan Ali, eleito na Guiana em 2020: “Concorda que deve ser criado um Estado da Guiana Esequiba e que deve ser posto em prática um plano de desenvolvimento acelerado […] incluindo, entre outras coisas, a concessão da cidadania venezuelana e de bilhetes de identidade, [e] consequentemente a incorporação deste Estado em todo o território venezuelano?” Muitos interpretaram esta afirmação como uma vontade de anexar o país pela força.

A hipótese de uma invasão militar é levada a sério nas chancelarias. No Brasil, que faz fronteira com a Venezuela e a Guiana, o Ministério da Defesa anunciou na sexta-feira que “intensificou as acções defensivas na região fronteiriça norte e aumentou a sua presença militar”. Por seu lado, o investigador Jean-Jacques Kourliandsky, numa análise publicada pelo site “Nouveaux espaces latinos”, interroga-se: “Será que [Nicolás Maduro] está a pensar nos efeitos inesperados oferecidos pelas crises na Ucrânia e no Médio Oriente, que permitiram ao Azerbaijão, por exemplo, recuperar Nagorno-Karabakh após uma breve blitzkrieg?”

Caracas negou quaisquer preparativos militares na fronteira e quaisquer intenções belicosas, como Georgetown o acusou de fazer. E a vice-presidente venezuelana Delcy Rodríguez procurou tranquilizar os 125 mil habitantes de Essequibo, todos de língua inglesa: “Eles sabem que a Venezuela é um país de paz”. No entanto, ainda não há planos para pedir a sua opinião.

leave a reply