África/Relatório: No Níger, a junta despenaliza o tráfico de migrantes, num desafio à União Europeia

A 25 de novembro, foi revogada uma lei de 2015 que penalizava o tráfico de migrantes. Um passo atrás que parece ser um desafio à UE e ao seu apoio ao presidente deposto, Mohamed Bazoum.

O seu sonho de emigrar para a Europa foi desfeito e acabaram no Níger. Ali, encostados a este muro forrado de frágeis barracas de madeira e plástico, de frente para um campo de lixo, em pleno centro de Niamey. É aqui que vivem os serra-leoneses, nós somos 168″, diz Hapsatou (1), 29 anos, chapéu preto e mãos calejadas, espremida num tapete com outras cinco jovens. Eu era cabeleireira na Líbia. Fui presa em abril por polícias muito, muito maus e depois evacuada para aqui pela OIM [Organização Internacional para as Migrações, uma agência das Nações Unidas]. Mas não há trabalho, não há nada para comer”. “Usamos esta lixeira como casa de banho e procuramos comida aqui. Temos vergonha daquilo em que nos tornámos. Olha para a minha cara de vagabundo”, acrescenta Al-Hussein (1), de 25 anos, com o cabelo desgrenhado avermelhado pelo pó. Está a vegetar nesta fossa desde janeiro.

Não ouviu falar da revogação da lei de 2015 que penalizava o tráfico de migrantes. A lei foi assinada no sábado, 25 de novembro, e tornada pública na segunda-feira, 27 de novembro, pelas autoridades que estão no poder desde o golpe de Estado de 26 de julho. Esta lei abre caminho à retoma das actividades dos passadores e transportadores de migrantes para o Norte de África. Mas isso não interessa a este grupo de serra-leoneses que gritam em uníssono: “Queremos ir para casa! E protestam contra a OIM, que é suposto repatriá-los. “Vamos ter com eles todos os dias e dizem-nos para esperar”, suspira Al-Hussein. A organização, que não quis comentar, estimava, num comunicado de imprensa de 1 de setembro, que cerca de 5.000 migrantes da África subsariana que vivem nos seus sete centros de trânsito no Níger e 1.400 outros, que não estavam alojados, aguardavam assistência para o repatriamento voluntário.

“Um parceiro essencial”

Para estes indesejáveis na Europa, não haverá “Wir schaffen das!” (“Nós vamos lá chegar!”, em alemão), a famosa frase cunhada por Angela Merkel quando abriu as portas da Alemanha a centenas de milhares de sírios que fugiam da guerra, em 2015. Nesse mesmo ano, a cimeira UE-África, realizada em Valeta, visava travar o fluxo de migrantes africanos para as costas europeias. E o Níger, país de trânsito entre a África Ocidental e o Norte de África, recebeu 285 milhões de euros, tornando-se o principal beneficiário africano e um “parceiro essencial” para a UE, segundo Florence Boyer, investigadora do Institut de recherche pour le développement.

Enquanto uma miríade de organizações europeias e internacionais se empenhava em proteger as fronteiras do Níger ou, como a OIM, em evacuar os presumíveis exilados e mantê-los em África, a lei sobre o tráfico de migrantes foi elaborada “com os serviços do Gabinete das Nações Unidas contra a Droga e o Crime, que estiveram diretamente envolvidos na sua redação”, sublinha a investigadora. Adoptada a 26 de maio de 2015, levou à detenção de 95.200 migrantes desde 2016, segundo a OIM. Mas também “foi vivida como uma forma de injustiça, nomeadamente na região de Agadez”, prossegue Florence Boyer. “Mais de uma centena de apreensões de veículos e várias dezenas de pessoas foram detidas, criando tensões entre as populações, as autoridades locais e as autoridades nacionais.”

“Os polícias da Europa”

Em Agadez, histórico cruzamento comercial entre o Norte e o Sul do Sara, “os ex-combatentes voltaram a dedicar-se ao transporte de migrantes, depois dos acordos de paz com os rebeldes tuaregues, em 1995. Investiram em veículos 4×4, também para servir a região. Tivemos um boom económico até à lei de 2015, que nos fez cair a pique, apesar dos milhões anunciados”, acrescenta Rhissa Feltou, presidente da câmara da cidade ocre de 2011 a 2019. De acordo com Mahamane Sanoussi, secretário-geral do movimento M62 e fervoroso opositor desta lei desde 2015, 150 pessoas foram presas no país e injustamente acusadas de “tráfico”. Contrabandistas, motoristas, recrutadores, proprietários de “guetos” onde se alojavam os candidatos a exilados…

À meia-luz de um gabinete, insiste também nos danos colaterais desta “repressão súbita”: aumento do desemprego, tráfico de Tramadol e de cocaína, actos de violência e ressentimentos dos países vizinhos, que qualificam os nigerianos de “polícias da Europa”. O seu apelo, apoiado por outros actores da sociedade civil e eleitos locais, contribuiu certamente para a revogação da lei em 25 de novembro.

Mas um fator mais imediato parece ter sido decisivo. A 23 de novembro, os eurodeputados aprovaram uma resolução sobre a detenção ilegal do presidente deposto Mohamed Bazoum, apelando à punição dos membros da junta no poder. A resolução foi em grande parte simbólica, uma vez que a Comissão Europeia já tinha definido o quadro de possíveis sanções um mês antes. Os eurodeputados exigem que Mohamed Bazoum seja “imediatamente reposto” no poder. “As suas condições de detenção e a pressão exercida pelos golpistas sobre um chefe de Estado devidamente eleito justificam plenamente esta resolução”, defende Bernard Guetta, do Grupo Renaissance. Niamey é inflexível neste ponto, argumentando que milhões de nigerianos já são injustamente punidos por organizações regionais. Por isso, a reação foi rápida. Olho por olho, dente por dente.

(1) Os nomes próprios foram alterados.

leave a reply