Médio Oriente/Migrantes: O racismo anti-negro no mundo árabe, a difícil revelação de um tabu

Recentemente, a caça aos migrantes subsarianos na Tunísia pôs em evidência a tímida consciência do racismo contra os negros no mundo árabe.

No dia 1 de julho, Fati Dasso e a sua filha Marie, de 30 e 6 anos respetivamente, foram encontradas mortas, com a cabeça enterrada na areia, na fronteira entre a Tunísia e a Líbia. Tal como milhares de migrantes da África subsariana, tinham sido detidos e abandonados no deserto. Este drama insere-se numa campanha maciça de detenções e expulsões de imigrantes levada a cabo pela Tunísia de Kaïs Saïed desde o início do verão. Detidos e espancados pela polícia em Sfax, os migrantes subsarianos foram libertados no deserto entre a Tunísia e a Líbia, onde os aguardava uma morte lenta e dolorosa.

Infelizmente, não se trata de um incidente isolado, nem é inteiramente novo na região. O drama deste verão centrou as atenções na Tunísia, mas a questão parece dizer respeito a todo o Magrebe e mesmo a uma grande parte do mundo árabe. Em março passado, a ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) denunciou o abandono de milhares de migrantes subsarianos pela Argélia na fronteira entre o Níger e a Argélia, em condições “sem precedentes”. Já em 2017, o canal americano CNN revelou num documentário a existência de tráfico de migrantes subsarianos na Líbia, não muito longe da capital Tripoli.

Esta violência contra os migrantes é acompanhada de uma retórica racista contra eles, por vezes até vinda do topo do Estado. Num discurso recente, proferido em fevereiro de 2023, o Presidente tunisino Kaïs Saïed comparou a presença de migrantes a “uma vontade de fazer da Tunísia apenas um país africano e não um membro do mundo árabe e islâmico”. Mas este racismo não afecta apenas os exilados. Maha Abdelhamid, investigadora associada do Centre arabe de recherches et d’études politiques de Paris (Carep) e co-fundadora do coletivo Voix des femmes tunisiennes noires (VFTN), explica que “os negros são uma minoria nos países árabes e sofrem todos os dias racismo verbal, institucional, social e económico. Sofrem uma forte rejeição da sua parte”. Na sua opinião, isto deve-se a uma memória histórica ainda muito mal documentada e a construções identitárias congeladas pelo nacionalismo.

“A organização económica é em parte herdada da estrutura do comércio de escravos”.

A manutenção de um sistema de discriminação contra os negros parece andar de mãos dadas com uma forma de embaraço em torno da questão do tráfico trans-sahariano de escravos – que envolveu principalmente, mas não exclusivamente, pessoas de origem subsaariana – praticado desde o século VII até ao final do século XIX no Magrebe e no Médio Oriente: “Falar de escravatura significa reconhecer que a organização económica atual é, em parte, herdeira da estrutura da escravatura”, defende Shreya Parikh, doutoranda em sociologia na Sciences-Po Paris, que trabalha sobre os processos de racialização no Norte de África. Dá o exemplo dos homens e mulheres maioritariamente negros explorados no sector agrícola em Sfax e nos arredores de Tataouine.

A nível universitário, a investigação científica sobre o tráfico de escravos árabe surgiu nos últimos dez anos, embora com algumas dificuldades. Salah Trabelsi, professor universitário de história e civilização do mundo árabe e muçulmano na Universidade de Lyon-2, recorda um colóquio que co-organizou em 2009, em Tozeur, consagrado em particular à escravatura no mundo árabe-muçulmano: “Tivemos de mudar o título para ‘Interacções culturais entre o Magrebe e a África subsariana’ para conseguirmos que fosse financiado”, diz com um sorriso.

No final da mesma conferência, nenhum dos oradores – à exceção do escritor Edouard Glissant, do historiador Abdelhamid Larguèche e do professor Trabelsi – aceitou assinar uma carta que indicava o desejo de incluir a história da escravatura nos manuais escolares tunisinos. “A história da escravatura não aparece nos manuais escolares. Nas escolas secundárias, ainda não é possível abordar os factos históricos com uma posição crítica. Este défice intelectual é, de qualquer modo, agravado por uma cegueira política e moral que relega os negros para o estatuto de cidadãos de segunda classe”, continua Salah Trabelsi.

Há um grande número de obras contemporâneas, nomeadamente romances como “L’Océan des Britanniques” [O Oceano dos Britânicos] de Fareed Ramadan, publicado em Beirute em 2018, que abordam estas questões. Claro que isto chega a um público limitado, porque nem toda a gente lê romances ou ensaios baseados em teses universitárias”, observa M’hamed Oualdi, professor universitário na Sciences-Po Paris e especialista em história do Magrebe.

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Esta difícil emergência da memória da escravatura pode também ser explicada por uma visão apologética do tráfico de escravos árabe, cuja violência é minimizada: “Para aliviar a consciência, há quem fale de ‘escravatura familiar e integradora’, que seria diferente do tráfico transatlântico de escravos. Trata-se de uma negação da história. As fontes dizem-nos que uma das maiores revoltas da história da escravatura teve lugar no sul do Iraque, no século IX. Durou um ano e provocou a morte de entre 50 000 e dois milhões de pessoas. Trabalharam nos pântanos a sul de Bassorá para limpar o sal e revitalizar as terras, para que pudessem tornar-se propriedades da aristocracia muçulmana. Não se pode dizer que não se tratou de escravatura laboral”, relata Salah Trabelsi.

Anos 2010: um ponto de viragem na compreensão das desigualdades sociais e raciais

O tabu é também mantido por pressões religiosas: “Se falarmos da escravatura no mundo árabe, estaremos a opor-nos ao Islão, como se a escravatura fosse um facto religioso e não um fenómeno social que perdura no mundo árabe há mais de catorze séculos”, explica Salah Trabelsi, antes de recordar que o tráfico de escravos árabe-muçulmano se verificou sobretudo no Médio Oriente, no Norte de África e na África Oriental. Mencionar a escravatura que teve lugar nestas terras pode ser visto como pôr em causa o papel do Islão como baluarte contra a escravatura.

Esta memória parece ter uma importância secundária, tanto mais que, desde os anos 60, os discursos sobre a necessidade de construir a unidade árabe foram considerados essenciais para lutar contra a presença colonial e forjar uma identidade política e social forte: “Os regimes nacionalistas do mundo árabe não aceitaram e não aceitam divergências em torno de questões de identidade, porque essas mesmas divergências foram utilizadas pelo regime colonial para criar oposições, por exemplo, entre falantes de árabe e falantes de berbere. Desde então, qualquer divisão parece perigosa”, explica M’hamed Ouldi. O pensamento pan-árabe impôs então a ideia de uma identidade árabe necessariamente muçulmana, invisível e impermeável a qualquer reconhecimento de alteridade ou reivindicação de identidade.

Embora à margem do debate, o racismo anti-negro não é totalmente ignorado. A década de 2010, graças à primavera Árabe, marcou um ponto de viragem na compreensão das desigualdades sociais e raciais: “Na Tunísia, algumas pessoas viram a revolução como uma oportunidade para romper com a tunisianidade – uma identidade homogénea imposta pelo Estado que não deixava espaço para aqueles que estavam em minoria”, relata Shreya Parikh. Em 2018, a Tunísia adoptou uma lei sem precedentes, a primeira no mundo árabe, que penaliza a discriminação racial. A Argélia adoptará legislação semelhante em 2020.

Desde então, os debates e os protestos concentraram-se principalmente nas redes sociais e foram impulsionados por uma geração mais jovem: a caça aos migrantes na Argélia e o assassinato de um senegalês em Marrocos, em 2013, suscitaram grande indignação. Em junho de 2020, o vídeo da atriz e realizadora palestiniana negra Maryam Abou Khaled, que denunciava a discriminação racial na região, ultrapassou a marca do milhão de visualizações.

No Magrebe, o aumento do número de migrantes subsarianos nos últimos anos parece ter tido um efeito ambivalente, com um recrudescimento da retórica racista – acusando os exilados de contribuírem para as dificuldades económicas do país – ao mesmo tempo que abre um debate sobre o racismo latente nesta parte do mundo. Mehdi Alioua, professor de sociologia na Sciences-Po Rabat, vê “uma revolução epistémica” sobre estas questões: “Na Tunísia e em Marrocos, há debates televisivos sobre o racismo. Na Tunísia e em Marrocos, há debates televisivos sobre o racismo. Ao mesmo tempo, assiste-se a uma reação com discursos reaccionários, racistas e rígidos sobre a identidade. São dois passos em frente e dois passos atrás.

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