Cultura/Brasil: Maria Quitéria, heroína da independência brasileira

Nascida há duzentos e trinta anos, Maria Quitéria de Jesus disfarçou-se de homem para lutar pela independência do país. Os seus esforços foram reconhecidos pelo Imperador Pedro I, e ela acabou por se tornar “um dos nomes femininos mais famosos da história do Brasil”.

Neste Brasil do início do século XIX, havia um obstáculo para Maria Quitéria de Jesus (1792-1853) se alistar no exército; ela podia ser uma boa atiradora, podia saber montar a cavalo, podia saber caçar e pescar, mas era uma questão de género: Maria Quitéria podia ser uma excelente guerreira, mas era uma mulher.

Quando a Guerra da Independência eclodiu na Bahia, em Setembro de 1822, emissários do governo provisório contornaram as grandes propriedades para recrutar voluntários para a guerra contra os portugueses. Chegaram ao da família de Maria Quitéria, que produzia algodão e criava gado, no que é hoje o município de Feira de Santana, no interior do estado. A quinta é de tamanho médio, com 27 trabalhadores escravos.

“O seu pai não tinha filhos maiores e o emissário ficou de mãos vazias. Maria, que tinha ouvido a conversa, quis juntar-se à luta armada emergente. Disfarçou-se de homem e foi-se embora”, diz Nathan Gomes, curador e historiador de arte que fez uma tese de mestrado no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (USP) sobre o papel deste lutador na formação do imaginário nacional.

Maria Quitéria pode contar com a cumplicidade e ajuda da sua irmã Josefa. Ela cortou o cabelo, Maria Quitéria vestiu o uniforme do seu cunhado José Medeiros e assumiu a sua identidade. Assim, sob a identidade do soldado Medeiros, apresentou-se ao batalhão estacionado na região.

Capacidade de disparo

A maior parte da informação biográfica sobre Maria Quitéria chegou até nós através de Maria Graham (1785-1842), uma pintora e historiadora inglesa que viveu no Brasil durante alguns anos, conheceu a lutadora e contou a sua história no seu diário de viagem publicado em Londres em 1824.

“Maria Quitéria acabou por se tornar um dos nomes femininos mais conhecidos da história brasileira”, diz a historiadora Giovanna Trevelin, que estuda história e género na Universidade Estatal de Feira de Santana :

“Ela foi a primeira mulher conhecida a juntar-se ao exército para lutar numa guerra. Ela ocupava um espaço público que era então destinado aos homens, um espaço onde as mulheres não podiam entrar”.
O soldado Medeiros não só foi aceite, como imediatamente atraiu a atenção dos seus superiores para a sua pontaria.

“Quando o pai dela descobriu que ela estava lá, foi à procura dela. Mesmo quando lhe foi dito que ela era uma mulher, o comandante recusou-se a caçá-la com o argumento de que ela era muito melhor atiradora do que muitos dos recrutas”, diz Paulo Rezzutti. Investigador e escritor, é o autor de Independência. A história não contada. A construção do Brasil: 1500-1825 [“Independência. Uma história não contada. A construção do Brasil: 1500-1825”, não traduzido].

“As suas capacidades foram reconhecidas como valiosas e mesmo os protestos do seu pai não puderam fazê-la desistir e ir para casa”, explica a historiadora Noely Zuleica Oliveira Raphanelli, doutorada pela USP:

“O comando [batalhão] compreendeu que ela seria de grande ajuda nos combates, por isso, agarrou-se às suas armas e não voltou com o seu pai”.
Se o pai não conseguir recuperar a sua filha, o episódio revela o sexo da sua filha. E não só Maria Quitéria é bem recebida pelos seus superiores, como lhe é dado o direito de continuar a lutar como mulher, sem ter de se vestir e comportar-se como um homem.

Decorado pelo Imperador

Uma carta oficial do batalhão datada de Março de 1823 pediu tecido para que ela pudesse “fazer uma saia uniforme”, diz Nathan Gomes. Não sabemos exactamente quando ela aderiu, mas foi provavelmente entre Setembro e Outubro de 1822. Assim, foi provavelmente durante esses cinco ou seis meses que ela viveu disfarçada de homem”, acrescenta ele.

Após a independência, a carreira de Maria Quitéria foi oficialmente reconhecida. “O seu nome é mais conhecido do que o das outras mulheres que lutaram, sobretudo porque foi honrada pelo próprio Pedro I”, salienta Giovanna Trevelin. Ela já tinha sido elevada à categoria de cadete [ou seja, futura oficial] quando foi recebida no Rio de Janeiro pelo imperador, que a tornou cavaleiro da Ordem Imperial da Cruz em 20 de Agosto de 1823.

“Desejando conferir a Dona Maria Quitéria de Jesus a distinção que assinala os serviços militares que prestou à causa da independência deste império com uma ousadia rara na maioria dos membros do seu sexo, na restauração pelas armas da capital da Bahia, autorizo-a a usar a insígnia de Cavaleiro da Ordem Imperial da Cruz”, declarou Pedro I.

Em 1920, durante os preparativos para a comemoração do primeiro centenário da independência, o Museu Ipiranga [São Paulo] pediu ao artista italiano Domenico Failutti (1872-1923) para pintar o seu retrato, e a obra foi incorporada nas colecções da instituição.

Para o centenário da sua morte em 1953, Salvador de Bahia obteve uma estátua em sua memória. E em 1966, Maria Quitéria tornou-se patrona do quadro complementar de oficiais do exército. O seu nome foi inscrito no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria em 2018. Embora não haja consenso sobre a data do seu nascimento devido à falta de documentos, a data de 27 de Julho de 1792, há duzentos e trinta anos, é geralmente aceite.

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